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Maricultura
26 de Fevereiro de 2024 Gilberto Manzoni
Programa Nacional de Moluscos Bivalves Seguros – MoluBiS, uma garantia para os consumidores e uma grande preocupação para os maricultores

No início do mês de fevereiro de 2024, a Secretaria de Defesa Agropecuária (DAS), vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), promoveu o lançamento oficial da Portaria SDA/MAPA Nº 884, de 6 de setembro de 2023, que aprova o Programa Nacional de Moluscos Bivalves Seguros - MoluBiS, estabelecendo o controle higiênico-sanitário dos moluscos bivalves destinados ao consumo humano ou animal, o seu monitoramento e fiscalização, que passa a ter validade no dia 1º de abril de 2024 (data sugestiva, mas não é “mentira”).

 

 

Esta portaria, que revoga a Instrução Normativa Interministerial MPA/MAPA no 107/2012, é extremamente válida, pois ela pode garantir a qualidade dos moluscos oferecidos ao mercado consumidor nacional e internacional, desde que todos os atores envolvidos, direta e indiretamente, na cadeia produtiva cumpram os seus papeis.

Antes de falar desta preocupação, responsabilidade, ou melhor, irresponsabilidade da falta de saneamento básico na maioria dos municípios litorâneos do Brasil, gostaria de relatar alguns fatos importantes no monitoramento microbiológico e de ficotoxinas nas áreas de cultivo e nos moluscos cultivados em Santa Catarina que culminaram na publicação desta Portaria e dos parâmetros que devem ser monitorados.

Considerando que os nossos moluscos cultivados são organismos filtradores e retiram todo o seu alimento do ambiente aonde estão é premissa básica: conhecer a “qualidade ambiental ou microbiológica‘’ dos moluscos e das áreas onde os mesmos são cultivados. Também é fundamental ter cuidados como estes organismos são transportados até os centros de beneficiamento, em quais condições são beneficiados e distribuídos para a comercialização.

Com relação aos parâmetros de “qualidade ambiental” nas áreas de produção de moluscos em todo o Brasil sempre foi priorizado o monitoramento microbiológico na água e posteriormente nos organismos cultivados, mesmo que no saudoso “Manual da Maricultura”, publicado em 1983 pelo Almirante Paulo de Castro Moreira da Silva, Coordenador do Projeto Cabo Frio, do Instituto de Pesquisa da Marinha, já falasse da importância da depuração, do monitoramento de florações de algas produtoras de toxinas (marés vermelhas) nas áreas de cultivo. Talvez porque este tema, algas produtoras de toxinas, fosse pouco conhecido/estudado pelos pesquisadores no Brasil até meados dos anos 90. Além disso, legalmente não era um parâmetro exigido.

Analisando os aspectos legais na seleção de uma área de cultivo para moluscos, os agentes norteadores principais foram e são as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), inicialmente a Resolução no 20 de 1986, que foi substituída pela Resolução no 357 de 2015. Apesar destas resoluções abordarem outros parâmetros físico-químicos, inorgânicos (“metais”) e orgânicos (“organoclorados; hidrocarbonetos e outras substâncias tóxicas”), os coliformes termotolerantes sempre foram o principal foco do monitoramento, até mesmo porque áreas próximas a efluentes de industrias já eram excluídas de imediato, como inadequadas para o cultivo de moluscos.

Posteriormente, para garantir a qualidade dos moluscos a serem comercializados, começaram a ser analisados parâmetros microbiológicos na carne destes organismos, seguindo os critérios estabelecidos pelo Departamento de Inspeção de Pescado (DIPES) e pelo Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (DIPOA) que estão vinculados ao Ministério da Agricultura, Pecuária (MAPA).

As primeiras informações sobre a presença de algas produtoras de toxinas, nas áreas e nos moluscos cultivados no Brasil datam de meados da década de 90, quando os pesquisadores, Leonardo Rörig e Luiz Proença, que na época faziam parte da Equipe da Oceanografia/ UNIVALI, começaram a monitorar e identificaram a presença destas microalgas no Parque Aquícola da Armação do Itapocoroy (Penha, SC).

A partir destas informações, já com apoio do Governo do Estado, em 1997 as pesquisas começaram a ser ampliadas para as outras áreas produtoras de moluscos, onde naturalmente foram identificadas, pois como já diziam os pesquisadores da UNIVALI na época: “Só não tem algas tóxicas, onde não existe monitoramento”.

Em função dos resultados do monitoramento, associado à evolução da Malacocultura Catarinense, e principalmente garantir a qualidade do produto cultivado ao mercado consumidor, em 2002 a Secretaria de Agricultura do Estado de Santa Catarina, publicou a Portaria no 021/2002, estabelecendo um monitoramento regular nas áreas e nos moluscos cultivados, envolvendo além de aspectos microbiológicos, as algas produtoras de toxinas.

É fundamental destacar novamente o papel de protagonismo e apoio do Governo do Estado de Santa Catarina também no monitoramento da qualidade das áreas e dos moluscos cultivados, seja através da Secretária da Agricultura, EPAGRI (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina) e CIDASC (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina), que sempre viabilizaram a participação dos maricultores, universidades e das diversas instituições de governança municipais, estaduais e federais no compartilhamento de informações, tomadas de decisão, inicialmente através da Câmara Setorial da Maricultura, e posteriormente, no Comitê Estadual de Controle Higiênico Sanitário de Moluscos, e como sempre estimulando o estabelecimento de uma Política Nacional pelo Governo Federal para o Setor.

A participação efetiva do Governo Federal, neste tema, começa ocorrer em 2005, com a criação da Secretária Especial da Aquicultura e Pesca da Presidência da República, aportando recursos para a UNIVALI e EPAGRI, aprimorarem o monitoramento microbiológico e de ficotoxinas nas áreas e nos moluscos cultivados em Santa Catarina e principalmente, instituindo o Comitê Nacional de Controle Higiênico-Sanitário de Moluscos Bivalves - CNCMB, através do Decreto no 5564/2005.

Entretanto, somente em 2012 que temos o primeiro grande marco regulatório, com a publicação da Instrução Normativa Interministerial MPA/MAPA nº 07 que institui o Programa Nacional de Controle Higiênico-Sanitário de Moluscos Bivalves – PNCMB, definindo critérios de monitoramento, controle e fiscalização de microorganismos contaminantes e biotoxinas marinhas nos animais de cultivo e estabelece os requisitos mínimos para garantir a inocuidade e qualidade dos moluscos bivalves destinados ao consumo humano, abrangendo as etapas de retirada, trânsito, processamento e transporte da matéria prima (moluscos).

Passados 11 anos da publicação desta Portaria, que mesmo sendo de abrangência nacional, somente o Estado de Santa Catarina atendia regularmente os requisitos legais desta legislação, uma nova Portaria é publicada, Portaria SDA/MAPA nº 884, de 6 de setembro de 2023, recebe o nome de MoLuBis, redefinindo o Programa Nacional de Moluscos Bivalves Seguros e estabelecendo novos critérios para as etapas de retirada, trânsito, processamento e transporte da matéria prima. (Para quem tiver interesse ou trabalha com moluscos, recomendo fazer uma leitura detalhada desta portaria, pois vou fazer alguns comentários pontuais).

 

 

Com relação aos parâmetros a serem monitorados neste programa, além das microalgas nocivas produtoras de toxinas (ficotoxinas) na água e contaminantes microbiológicos (Escherichia coli) em moluscos bivalves ocorreu a inclusão da necessidade do monitoramento de contaminantes inorgânicos (cádmio, chumbo e mercúrio) e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (benzo(a)pireno, benzo(a)antraceno, benzo(b)fluoranteno e criseno) no tecido (carne) dos moluscos.

A periodicidade das amostras, para E. coli e ficotoxinas, devem ser no mínimo quinzenais em locais que não apresentam uma série histórica de 18 meses, podendo ser intensificadas de acordo com o nível de alerta que podem atingir. Para os contaminantes inorgânicos e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, deve ter no mínimo uma amostra por ano. Destaca-se que estes parâmetros somente podem ser analisados por métodos e laboratórios aprovados pelo Ministério da Agricultura e Pecuária.

Outros pontos que merecem destaque é que após uma série temporal de 24 resultados de níveis de contaminação por E. coli (NMP por 100 g) na carne dos moluscos, as áreas de cultivo (vigilância), de acordo com o Artigo 42,  podem ser classificas em Classe A; B; C ou até mesmo suspensa, situação esta quando os valores de NMP de E. coli forem superiores a 46.000 em 100 g de molusco.

Os moluscos originários de áreas de vigilância Classe A, têm a sua retirada livre, os da Classe B ou C, têm a sua retirada sob condição, devendo passar por depuração natural ou em ambiente controlado. É proibida a retirada de moluscos de áreas suspensas.

Também é suspensa a retirada de moluscos nas áreas de vigilância às quais as amostras de moluscos bivalves apresentarem concentrações de ficotoxinas contaminantes, contaminantes inorgânicos ou hidrocarbonetos policíclicos aromáticos superiores aos limites definidos nas Seções VI e VII do Capítulo II desta Portaria. Destaca-se que esta situação de retirada suspensa, tomando em conta os parâmetros acima, pode retornar à situação de liberada ou liberada sob condição, após a obtenção de dois resultados consecutivos que comprovem a mudança de categoria, respeitando-se o intervalo mínimo de 72 horas entre as coletas e observando se as respectivas espécies de referência.

Com relação a reclassificação das áreas de vigilância suspensa, observando os níveis de contaminação por E. coli (NMP por 100 g) na carne dos moluscos, é mais rigorosa, pois se faz necessárias mais novas 18 amostras, com resultados inferiores de NMP de E. coli a 46.000 por 100 g, que dependendo da periodicidade e local pode demorar até 9 meses.

Conforme comentei no início, esta portaria é um avanço na garantia da qualidade do produto cultivado e que é oferecido ao mercado consumidor, nacional e até mesmo internacional. Mas, por outro lado, se considerarmos a situação do saneamento básico nos municípios litorâneos onde tem cultivo de moluscos esta portaria é uma preocupação para os produtores, pois gradativamente temos verificado uma piora na qualidade da água no Litoral Catarinense, onde os governantes municipais não priorizam as suas ações na implantação do Sistema de Saneamento Básico e sim priorizam a verticalização e adensamento nas áreas costeiras. É importante destacar que ninguém é contra o desenvolvimento dos municípios litorâneos, mas ele tem que vir acompanhando de obras de infraestrutura básica, como saneamento.

Quando analisamos a série temporal de 10 anos dos dados do monitoramento microbiológico nas áreas aonde os moluscos são cultivados em Santa Catarina, (https://www.cidasc.sc.gov.br/defesasanitariaanimal/resultado-de-analise-microbiologica/), infelizmente verificamos uma piora na qualidade ambiental, uma diminuição gradativa nas áreas consideradas como liberadas (Classe A), um aumento significativo na áreas liberadas sob condição (Classe B e C) e inclusive o aparecimento de áreas suspensas.

Mais preocupante ainda é se analisarmos os dados Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), administrado pela Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades (SNSA/MCidades), que reúne informações da prestação de serviços públicos de esgotamento sanitário em 5.150 municípios (92,5% dos 5.570 do país), pois verifica-se que somente 2.902 municípios (56,3% da amostra) contam com sistemas públicos de esgotamento sanitário. Em 2.248 municípios (43,7% da amostra) são utilizadas soluções alternativas como fossa séptica, fossa rudimentar, vala a céu aberto e lançamento em cursos d’água, que fatalmente desaguam em áreas costeiras.

Na região sul a estimativa é que 49,7% da população seja atendida com rede pública de esgoto, na região nordeste o atendimento atinge 31,4 % e na região norte somente 14,7%. Os melhores valores de atendimento estão na região sudeste aonde as estimativas são que 80,9% da população conta com sistema de coleta e tratamento de esgoto.

Analisando as informações dos estados litorâneos que produzem moluscos, São Paulo é o grande destaque nacional em saneamento básico, pois 90,5% da população apresenta rede de esgoto, Paraná 76,3%, Rio de Janeiro 65%, , Pernambuco 34,2%, Rio Grande do Norte 30,2% e incrivelmente, ou melhor, lamentavelmente em Santa Catarina a estimativa é que somente 29,1% da população seja atendida por esgoto, ou seja, esgotamento sanitário ainda não é prioridade em Santa Catarina, um estado que é referência não somente na maricultura, mas também no turismo nacional, principalmente devido as suas belas raias. Segundo o ranking nacional dos 100 municípios que apresentam saneamento básico, Florianópolis ocupa a posição 59, onde 65% da população já é atendida com esgotamento sanitário.

Preocupados com a situação de qualidade sanitária no litoral catarinense, a Câmara Setorial da Maricultura já promoveu 3 Workshops sobre Saneamento e Maricultura, no sentido de cobrar dos governantes e empresas responsáveis pelo saneamento, ações efetivas que promovam uma melhoria na qualidade microbiológica das águas costeiras, pois a falta de saneamento básico não é um problema que atinge somente a maricultura, também é uma questão de saúde pública e desenvolvimento econômico associado à promoção do turismo. Apesar do esforço da Câmara Setorial, em especial do Presidente Maricultor, Leonardo Cabral Costa e do Secretário Felipe Matarazzo Suplicy (EPAGRI/CEDAP), na promoção destes workshops, desde 2017, pode-se afirmar que na prática os avanços foram incipientes.

Obviamente, os maricultores catarinenses, além de cobrarem medidas das instituições responsáveis, não ficaram esperando as “soluções governamentais” e já buscaram alternativas, para continuar a oferecer aos consumidores de todo o Brasil moluscos com qualidade e origem reconhecida, seja através da realocação das suas áreas de cultivos para regiões mais distantes das fontes poluidoras e, principalmente, através da implantação de estações depuradoras. Particularmente, acho que este é o caminho que os produtores de moluscos devem seguir, DEPURAÇÃO DOS MOLUSCOS CULTIVADOS,  que conforme consta na Portaria Molubis é um processo aplicado aos moluscos bivalves com a finalidade de reduzir sua contaminação microbiana a níveis aceitáveis para o consumo humano por meio da manutenção de moluscos bivalves vivos por um período de tempo aprovado, em ambiente controlado da estação depuradora de moluscos bivalves, com água salgada natural ou artificial, tratada ou não tratada, adequada ao processo.

 

 

Entretanto, é fundamental que os órgãos governamentais façam os seus papéis seja na ampliação dos sistemas de tratamento de efluentes e viabilizando que os outros estados produtores de moluscos implantem os seus Programas de Moluscos Bivalves Seguros, fiscalizando as etapas de retirada, trânsito, processamento, transporte da matéria-prima para que o comércio ilegal dos moluscos seja coibido e que o mercado consumidor tenha certeza que está consumindo um produto com qualidade e origem reconhecida, pois somente assim a Malacocultura no Brasil irá evoluir, cada um fazendo a sua parte e não “sobrando” somente para os produtores que obrigatoriamente têm que atender vários critérios, que muitas vezes não é atribuição deles.

Autor: Gilberto Caetano Manzoni

http://lattes.cnpq.br/1578212353079715 

 

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Capa do colunista Gilberto Manzoni
Gilberto Manzoni

Gilberto Caetano Manzoni, formado em Oceanologia em Rio Grande (1987) , Ingressa na Equipe do Laboratório de Moluscos Marinhos da UFSC em 1988,  conclui seu Mestrado em Aquicultura na UFSC em 1994 e Doutorado em Aquicultura em 2005 no CAUNESP – Jaboticabal/SP.
Professor Pesquisador na área de Maricultura do Curso de Oceanografia da UNIVALI-SC (desde 1994), responsável pelas disciplinas de Aquicultura Geral e Maricultura, Coordenador do Centro Experimental de Maricultura, localizado na Enseada do Itapocoroy– Penha – SC
Experiência profissional
Trabalha com pesquisa, ensino e extensão na área de Maricultura, principalmente com moluscos marinhos em Santa Catarina a 35 anos. Também nas últimas 2 décadas vem participando de projetos de pesquisas relacionados com peixes marinhos e recentemente com macroalgas e invertebrados marinhos.
Integrante da Câmara Setorial de Maricultura, do Comitê Higiênico Sanitário de Moluscos Bivalves, da Rede Catarinense de Piscicultura Marinha, da Rede Nacional de Pesquisa e Monitoramento Ambiental da Aquicultura em Águas da União. Coordenador técnico da Associação e Cooperativa de Maricultores da Penha  
Experiencia na área de Monitoramento ambiental em áreas de Maricultura, Associativismo, Cooperativismo de produtores, Gestão ambiental e Certificação ambiental em produtos e processos
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Charge Edição nº Publicado em 18/09/2023
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