Circularidade na Aquicultura e Serviços Ecossistêmicos: temas isolados ou existe coesão?
Breve introdução: Na coluna da 23ª edição da Aquaculture Brasil, abordamos a circularidade e citamos exemplos de sistemas de produção e estratégias de manejo que promovem a economia circular. Ou seja, fomentar no ambiente aquícola o uso de técnicas que dependem menos de matérias primas e que otimizam ao máximo o uso dos recursos, priorizando insumos mais duráveis, recicláveis e renováveis. Recentemente, participei do Aquaculture Europe 2023 em Viena, Austria (Figura 1), e pude ver como abordagens de circularidade estão cada vez mais em alta. Ingredientes alternativos para produção de rações mais ecológicas e sistemas de produção como os multitróficos integrados (IMTA na sua sigla em inglês), Aquaponia, bioflocos, entre outros, são apenas alguns exemplos e que estão crescendo cada vez mais a nível de pesquisa mas também comercial. E neste evento europeu da Sociedade Mundial da Aquicultura, pude perceber que além de uma maior eficiência no uso das rações, espaço, água e nutrientes, esses modelos e estratégias de produção também podem fornecer outros serviços ecossistêmicos. Mas afinal, o que são os serviços ecossitêmicos? Quais os pricipais serviços que os sistemas ‘não tradicionais’ de cultivo ou ingredientes alternativos podem trazer? Como podemos medir esses serviços ecossistêmicos? Para responder essas perguntas, vamos explorar a experiência e a opinião de nosso ilustre entrevistado, e enteder um pouco mais sobre os serviços ecossitêmicos e sua relação com uma aquicultura mais moderna e eficiente! Uma ótima leitura!
Figura 1 – Aquaculture Europe 2023 realizado recentemente em setembro em Viena, Austria
1. Poderia descrever brevemente a sua experiencia com a Aquicultura Sustentável e indicadores de sustentabilidade?
Luiz: Meu contato com a abordagem de “aquicultura sustentável” começou já na graduação. As disciplinas de aquicultura eram lecionadas por professores que sempre traziam exemplos de sistemas de produção mais novos, que vinham crescendo baseados no conceito de sustentabilidade, como: bioflocos, aquaponia e outros sistemas integrados. Isso me chamou atenção. Além disso, foi nessa mesma época em que ingressei no laboratório de aquicultura da universidade, que era coordenado por esses mesmos professores. Ali decidi guiar minha carreira para a área de desenvolvimento sustentável da aquicultura. Além da visão “mais sustentável” dos professores, por ser tudo muito novo, o laboratório era limitado em alguns recursos, como espaço, disponibilidade de água, e dinheiro para comprar alguns insumos como ração. Então, além de uma escolha, ser sustentável era também uma necessidade na nossa situação (e na situação do mundo hoje). Isso fez com que os principais sistemas utilizados por nós fossem os sistemas de recirculação de água, bioflocos e aquaponia. Todos esses sistemas de alguma maneira se encaixavam nas nossas limitações, eram do nosso interesse, e ainda nos permitia fazer pesquisa de qualidade.
Desde que comecei a trabalhar com aquicultura na graduação, sempre ouvia que “o sistema x era mais sustentável porque usava menos água”, ou que “o sistema y era mais sustentável porque produzia mais de uma espécie”, e me perguntava: essas características são suficientes para afirmam que esses sistemas são sustentáveis? Não seria necessário medir/calcular isso de alguma maneira? Ok, um usa menos água, mas para isso ser possível muito mais energia elétrica é necessária. O outro integra várias espécies, mas demanda muito mais infraestrutura, equipamentos e mão de obra especializada. Será que as pessoas não veem isso e não ficam em dúvida sobre a sustentabilidade dos sistemas? Eu ficava.
Essas dúvidas ficaram na minha cabeça por um bom tempo. No mestrado, fui apresentado ao mundo das avaliações de sustentabilidade. Descobri que as minhas dúvidas em relação a sustentabilidade dos sistemas podiam ser respondidas aplicando alguns métodos de avaliação. E, a partir dessas avaliações, obter indicadores que poderiam apontar o que precisava ser modificado ou melhorado nos sistemas de produção para torná-los mais sustentáveis. Durante o mestrado, me especializei na “síntese em energia”, um dos principais métodos utilizados para medir sustentabilidade. Desde então, nosso trabalho (meu e de colaboradores) tem sido baseado em dados de experimentos realizados em escala comercial ou coleta de dados de fazendas aquícolas, com objetivo de gerar resultados o mais próximo da realidade possível, para que esses possam ser facilmente aplicados no campo. Desde 2016 tenho trabalhado para aperfeiçoar e aplicar o método em sistemas de produção aquícola e, a partir disso poder solucionar problemas, gerar informações técnicas e científicas confiáveis, para guiar a aquicultura num caminho sustentável.
2. Como você vê a evolução de sistemas e abordagens que fomentam a circularidade na aquicultura?
Luiz: Vejo essa evolução de forma extremamente positiva e promissora! É importante que os sistemas que promovem a circularidade tenham ganhado mais atenção nos últimos anos, e que os que não adotavam esse conceito estão sendo adaptados para serem mais eficientes na utilização de recursos. Fico feliz que agora, além da visão econômica, os aspectos ambientais e sociais também tenham ganhado espaço na atividade aquícola. A aquicultura, como parte fundamental da produção de alimentos, não pode mais ignorar os impactos negativos no meio ambiente e nas comunidades locais.
Os sistemas produtivos têm se tornado cada vez mais eficientes em aproveitar ao máximo os recursos que são investidos na produção. Os produtos finais tem gerado cada vez menos resíduos, sao mais diversificados e indo além da produção do pescado. A cadeia produtiva está vendo que é possível resolver grandes problemas e ainda obter renda a partir disso, como a conversão de resíduos que seriam descartados no ambiente em fertilizantes, por exemplo. A busca pela circularidade da produção tem tornado as fazendas mais autossuficientes e sustentáveis. Isso não apenas promove a saúde dos ecossistemas aquáticos, mas também fortalece a segurança alimentar e a estabilidade das comunidades que dependem da aquicultura.
No geral, a evolução em direção à circularidade sinaliza um futuro mais promissor e responsável para a indústria aquícola. É fundamental continuar incentivando e apoiando essas iniciativas, a fim de garantir um sistema alimentar mais sustentável e resiliente.
3. Afinal, o que são os serviços ecossistêmicos? E como podemos medi-los?
Luiz: Os serviços ecossistêmicos são os benefícios que os seres humanos obtêm dos ecossistemas naturais. Em essência, eles representam as contribuições que a natureza faz para o bem-estar humano. No contexto da aquicultura, que é uma atividade que utiliza processos naturais para produzir alimentos, podemos considerá-la como um "ecossistema gerenciado". Na aquicultura, a própria produção de pescado pode ser considerado como serviço ecossistêmico de provisão.
O conceito de serviços ecossistêmicos ganhou popularidade nas pesquisas ambientais e na formulação de políticas nas últimas duas décadas. Isso se deve à crescente conscientização de que os sistemas de produção de alimentos, incluindo a aquicultura, podem proporcionar benefícios que vão além da produção de alimentos. A aquicultura pode gerar vários serviços ecossistêmicos, inclui a proteção da biodiversidade, a promoção da educação ambiental, a melhoria da qualidade paisagística, oportunidades de lazer e ecoturismo, proteção contra doenças, retenção de poluentes, preservação de práticas tradicionais, entre outros. Um estudo relevante para compreender como a aquicultura pode gerar esses serviços ecossistêmicos é o trabalho de Aubin et al. 2019.
A medição dos serviços ecossistêmicos e sua inclusão nas avaliações de sustentabilidade têm representado um desafio para os pesquisadores na área de sustentabilidade em aquicultura. Até o momento, conseguimos desenvolver métodos de medição para alguns serviços ecossistêmicos, como a regulação climática, que pode ser medida por meio do balanço de gases de efeito estufa e valorizada em termos de créditos de carbono. Outro exemplo é a purificação da água, que pode ser medida usando índices de eutrofização e a quantificação de nitrogênio e fósforo removidos da água, sendo valorizada como um serviço de tratamento de água. Além disso, serviços como recreação, ecoturismo e educação ambiental podem ser medidos pelo número de pessoas que visitam sistemas de aquicultura em busca de conhecimento, e esses dados podem ser valorizados por meio de taxas de visitação, como demonstrado em nosso estudo sobre o sistema de aquaponia (consulte David et al. 2022).
4. Um dos grandes desafios da Aquicultura é ter desempenho zootécnico satisfatório com responsabilidade ambiental, social e econômica. Você acredita que é possível ter desempenho zootécnico satisfatório, atender a esses três pilares, e ainda promover a circularidade e serviços ecossistêmicos?
Luiz: Certamente. O conceito de circularidade aplicado à aquicultura tem como objetivo fundamental estabelecer sistemas de produção mais sustentáveis, otimizando o uso de recursos e minimizando o impacto ambiental. A aplicação do conceito de circularidade não só não prejudicará a produtividade dos sistemas, como também poderá melhorá-la. O uso mais consciente dos recursos, como a água e os nutrientes, pode resultar na redução dos custos de produção e proporcionar um ambiente mais saudável para a criação de espécies aquáticas, por exemplo. No entanto, alcançar esse equilíbrio requer um compromisso sólido com práticas sustentáveis e a implementação de estratégias específicas, como: (i) adotar práticas de produção zootécnica que façam a gestão eficiente dos recursos naturais por meio da nutrição animal responsável e a manutenção de condições sanitárias adequadas. A escolha cuidadosa das espécies a serem cultivadas e dos sistemas de produção de acordo com as características locais também são essenciais para garantir um desempenho zootécnico satisfatório; (ii) tratar os trabalhadores de forma justa, garantir condições de trabalho seguras e respeitar a cultura das comunidades locais. A transparência na cadeia de suprimentos e a participação das partes interessadas locais são aspectos críticos a serem considerados; (iii) gestão financeira responsável, otimização de custos, a busca por mercados que valorizem produtos sustentáveis e a consideração de fatores de risco financeiro são fatores que vão garantir a sustentabilidade econômica da produção. Investir em pesquisa e inovação também pode melhorar a eficiência econômica a longo prazo.
Em resumo, é plenamente possível alcançar desempenho zootécnico satisfatório na aquicultura, atender aos princípios da sustentabilidade e promover a circularidade e serviços ecossistêmicos. Isso requer esforços contínuos, inovação e colaboração entre todas as partes interessadas, incluindo produtores, governos, organizações não governamentais e consumidores.
6. Por gentileza, deixe suas perspectivas futuras e considerações finais aos leitores da Aquaculture Brasil.
Luiz: O desenvolvimento sustentável da aquicultura deve ser fundamentado em estudos científicos de alta qualidade. A avaliação da sustentabilidade na aquicultura é um campo em crescimento e é importante para conseguirmos tornar a atividade cada vez mais autossuficiente e promotora de serviços ecossistêmicos.
Há uma variedade de métodos e indicadores disponíveis para avaliar a sustentabilidade da aquicultura, que podem abranger aspectos ambientais, sociais e econômicos. Essas ferramentas fornecem insights valiosos sobre os desafios e as oportunidades em sistemas aquícolas, e ajudam a orientar as decisões para melhorar a circularidade dos sistemas e potencializar a geração de serviços ecossistêmicos. No entanto, é fundamental que esses métodos e indicadores sejam colocados em prática e os resultados sejam aplicados. Isso significa que a pesquisa científica deve ser traduzida em ações e políticas concretas para promover a sustentabilidade na aquicultura. Além disso, é importante garantir que os dados coletados e as análises realizadas sejam confiáveis e abrangentes, para que as conclusões sejam sólidas e úteis.
Para isso, colaboração entre cientistas, produtores, governos e ONGs é fundamental para aumentar a conscientização sobre os desafios ambientais e a importância da sustentabilidade. Assim, esforços são direcionados para avaliar e melhorar a sustentabilidade na aquicultura.
Figura 2 – Pesquisador Dr Luiz David em seus estudos a campo de sustentabilidade (acima) e biofilme microbiano em sustratos como suplemento alimentar em cultivo comercial de tilapias em SP: exemplo de circularidade e melhor uso de recursos a campo (embaixo).
Por: Maurício G. C. Emerenciano*
CSIRO, Livestock & Aquaculture Program, Bribie Island Research Centre, Bribie Island, Austrália.
E-mail: mauricio.emerenciano@csiro.au
*As opiniões citadas acima são exclusivamente pessoais dos autores e não necessariamente remetem as opiniões das instituições vinculadas ao mesmo.
Maurício Emerenciano é graduado em Zootecnia (UEM), mestre em aquicultura (FURG) e doutor em Ciências pela UNAM (México). Em 2014 foi ganhador da Medalha Alfonso Caso (menção honrosa designada às melhores teses e dissertações dos Programas de Pós-Graduação da UNAM/México). Atua na aquicultura desde 2002 e como pesquisador já realizou cooperação científica em diversos centros de pesquisa como Waddell Mariculture Center (EUA), CSIRO (Austrália) e IFREMER (França). Foi consultor científico em aquicultura para o governo do Chile, do México e Polinésia Francesa (Pôle d’Inovación de Tahiti). Membro do Biofloc Technology Steering Committee (AES), voltado a ações científicas e tecnológicas referentes ao sistema BFT. Possui capítulo de livro referência mundial da tecnologia de bioflocos (Biofloc Technology - The practical guide 3rd edition). Já proferiu mais de 20 cursos e diversas palestras sobre tecnologias “mais verdes” de produção para produtores, indústria e academia no México, Brasil, Chile e Colômbia. Atualmente é professor e pesquisador da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), campus Laguna/SC, onde coordena projetos de pesquisa vinculados ao setor público e privado.
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