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08 de Maio de 2023 Maurício Emerenciano
Desvendando a ‘caixa-preta’ da Aquaponia: do empírico a ciência exata na dinâmica de nutrientes

Entrevista com o pesquisador Dr. Brunno Cerozi (email: brunno.cerozi@usp.br), expoente na pesquisa na área, com ampla experiência na pesquisa e aplicação comercial da Aquaponia.

 

 

 

 

 

Breve introdução: A aquaponia comercial amadureceu rapidamente nos últimos anos. De atividade praticamente inexistente, hoje é possível encontrar no Brasil e no mundo diversas fazendas comerciais em operação, empresas de consultoria e equipamentos dedicados a este crescente segmento. No entanto, evolui a passos mais lentos é a compreensão da dinâmica de nutrientes. Existem diversas abordagens sendo utilizadas atualmente, no entanto ainda muito ‘intuitivo’ e pouco analítico. Ou seja, precisamos sair de modelos empíricos (por exemplo, ‘X’ gramas de ração por planta por dia) para uma ciência mais exata. Fatores como engenharia do projeto, espécie aquícola, níveis de proteína da ração, digestibilidade de nutrientes, espécies vegetais, temperatura e época do ano, suplementos para qualidade de água, entre outros, vão afetar diretamente a dinâmica e exigência de nutrientes no sistema aquapônico. Nesta linha de raciocínio, vamos explorar a experiencia e a opinião de nosso ilustre entrevistado, e entender um pouco do estado da arte da Aquaponia e os desafios em relação a ‘caixa-preta’ de nutrientes. Uma ótima leitura!

 

1. Poderia descrever brevemente a sua experiencia com a Aquaponia? Como o engenheiro agrônomo Brunno Cerozi foi parar no mundo aquapônico?

 

Brunno: Realmente, piscicultura e aquaponia não parecem ser as primeiras escolhas dessa “linhagem de profissionais” que predominantemente direcionam suas carreiras para as grandes culturas como soja e milho, e a pecuária. Eu iniciei minha carreira científica durante os primeiros anos do curso de Engenharia Agronômica trabalhando com o Professor Zico em estudos envolvendo a imunomodulação dietética para o pacu como uma alternativa ambientalmente amigável, em contraste ao então uso desenfreado de antibióticos na piscicultura. Eu gostei tanto de trabalhar com saúde de peixes que decidi expandir os projetos de iniciação científica em um projeto mais ambicioso de mestrado que combinava o uso concomitante de probióticos e probióticos em rações de pacu em um conceito inovador para a época chamado de simbiótico. Foi nessa época que me deparei com o conceito de aquicultura sustentável que abrangia diversas práticas, inclusive a aquaponia. Foi amor à primeira vista e decidi que iria estudar aquaponia para o meu doutoramento. Entretanto, naquela época, aquaponia no Brasil era ainda um tema muito novo e, se eu quisesse um treinamento adequado na área, deveria partir para o exterior. Em 2012, iniciei o doutorado na Universidade do Arizona sob orientação do Dr. Kevin Fitzsimmons, onde estudei a produção de peixes e plantas integrados com um foco especial na dinâmica de mineralização de fósforo em sistemas aquapônicos. Após o término do doutorado, trabalhei como Lead Scientist da empresa Superior Fresh, atualmente o maior empreendimento de produção aquapônica ultra-intensiva de salmão do Atlântico e hortaliças folhosas nos Estados Unidos da América. Ainda nos EUA, atuei como professor e pesquisador na University of the District of Columbia em Washington DC, onde conduzia pesquisa em Aquaponia Urbana e ministrava disciplinas de graduação e pós-graduação e cursos de extensão sobre os diferentes sistemas de produção de peixes e plantas em grandes centros urbanos. Desde 2019, sou Professor Doutor no Departamento de Zootecnia da ESALQ da Universidade de São Paulo, onde ministro disciplinas de piscicultura na graduação e pós-graduação, e continuo minha pesquisa em sistemas de produção agricultura-aquicultura integrados. De 2019 a 2022, coordenei um Projeto Jovem Pesquisador financiado pela FAPESP que catalisou o desenvolvimento da linha de pesquisa em aquaponia na ESALQ-USP, complementando as linhas de nutrição e saúde de peixes já consolidadas no Setor de Piscicultura.

 

 

2. De uma forma bem genérica, como você vê a evolução da Aquaponia comercial no Brasil e no mundo ao longo dos últimos dez anos? Nesta evolução, o que diferencia o Brasil do resto do planeta?

 

Brunno: A aquaponia comercial brasileira evoluiu muito nos últimos dez anos. Se pudéssemos colocar um coeficiente, eu diria que por volta de 10 vezes. Os praticantes de aquaponia no Brasil conseguiram recuperar muito do tempo perdido em relação ao resto do mundo que já praticava aquaponia há algum tempo. Esse crescimento se sobrepõe à evolução da internet no Brasil nesta década, as mídias sociais e os smartfones.

Atualmente, a internet está inundada de conteúdo sobre aquaponia e isso é, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição. Estes novos veículos têm sido importantes canais para a divulgação da aquaponia, permitindo que as pessoas tenham acesso a uma ampla gama de informações palatáveis em diversos temas como espécies adequadas, arquitetura do sistema, manejo e viabilidade econômica. Isso tem permitido que a comunidade científica alcance um público mais amplo e diverso, tornando a ciência mais acessível e compreensível para as pessoas. No entanto, essa facilidade de acesso à informação também tem seus pontos negativos, pois as redes sociais têm sido inundadas por informações falsas e rasas, o que pode levar a confusão e desinformação sobre a aquaponia. Essa abundância de informações pode dificultar a identificação de informações confiáveis e precisas, o que pode levar a uma compreensão equivocada da aquaponia, principalmente sobre a melhor tecnologia disponível e viabilidade econômica de sistemas aquapônicos.

Pior ainda, a facilidade de acesso à informação levou ao surgimento de "falsos profetas aquaponistas", pessoas que se apresentam como especialistas em aquaponia, mas que na realidade não possuem a expertise necessária para falar sobre o assunto e, principalmente, fazer prognósticos e arquitetar um sistema aquapônico. Esses indivíduos podem disseminar informações errôneas ou simplificadas demais, o que pode levar a uma compreensão equivocada da aquaponia, gerando sérios prejuízos econômicos às pessoas que acabam investindo no sistema devido ao seu apelo ambiental. Um estudo revelou que apenas 31% das instalações comerciais de aquaponia relataram ser lucrativas e 47% dependiam de outros produtos ou serviços para obter receita adicional (Love 2014).

Mesmo com evolução visível, os sistemas de aquaponia no Brasil ainda precisam dar o próximo passo em encontro às novas tecnologias, principalmente em relação aos sistemas desacoplados, também conhecidos como "acoplados sob demanda". Esses sistemas permitem ajustes finos na nutrição de plantas de maneira assertiva e economicamente viável em relação aos convencionais.

 

3.   Como está sendo o papel da pesquisa/academia nesta evolução? Você acredita que existe uma adequada comunicação entre a academia e a indústria?

 

Brunno: Infelizmente, parece ainda haver um ruído na comunicação entre academia e indústria, principalmente no Brasil. Conforme mencionei anteriormente, os praticantes de aquaponia ainda se valem muitos de vídeos publicados no YouTube, mas aquela aquaponia já está defasada em pelo menos 30 anos. Os estudos científicos já abordam a aquaponia 4.0, enquanto muitas pessoas acabam ainda investindo seus esforços em aquaponia 1.0.

 

Apesar do acesso mais fácil às informações científicas através da internet e das redes sociais, ainda há uma grande dificuldade na comunicação da ciência para o público geral. Isso se deve em parte à complexidade das descobertas científicas e à linguagem técnica utilizada pelos cientistas, o que pode tornar difícil a compreensão das informações por pessoas sem formação na área. Além disso, muitas vezes as descobertas científicas levam tempo para chegar ao público geral, pois precisam passar pelo crivo de revisão por pares, ser publicadas em revistas científicas de renome e, em seguida, divulgadas pela mídia de massa. Esse processo pode levar anos e pode acabar tornando a ciência menos relevante ou interessante para o público geral. Por isso, é importante que os cientistas se esforcem para comunicar suas descobertas de forma clara e acessível, em diferentes canais de comunicação, de modo a aumentar a compreensão e o interesse do público geral pela aquaponia. Nunca foi tão importante como agora o componente de extensão rural para fomentar as melhores práticas de aquaponia e torná-la uma agroindústria consolidada no Brasil

 

 

 

 

 

 

4. Um dos grandes desafios da Aquaponia e’ manter um ambiente de produção adequado e equilibrado para organismos aquáticos e plantas. Parte desse desafio é atender as diferentes exigências de nutrientes. Você poderia falar um pouco mais das abordagens utilizadas atualmente?  

 

A aquaponia é intrinsicamente um sistema de produção híbrido comparado aos seus parentes piscicultura e hidroponia. E como qualquer sistema híbrido, há características que são sacrificadas em detrimento de outras. Poderíamos comparar a aquaponia aos carros flex no Brasil que podem rodar à gasolina ou etanol. O preço da “comodidade” em escolher o combustível que se usa no carro é pago na menor eficiência em litros por quilômetro rodado. Um carro flex rodando com gasolina apresenta uma menor eficiência em litros/km em relação a um caso movido à gasolina apenas.

No caso da aquaponia, a comodidade de se produzir peixes e plantas usando ração de peixes é pago com um desbalanço de nutrientes em relação à hidroponia. As rações para piscicultura foram formuladas para atender às exigências nutricionais de peixes, então o perfil de nutrientes na solução nutritiva resultante da excreção dos animais chega desbalanceado para atender adequadamente as exigências nutricionais de plantas.

Ao analisarmos o perfil de elementos de uma ração para peixes, há claramente uma grande diferença na relação entre os elementos, resultando geralmente em um excesso de nitrogênio em relação ao fósforo, potássio, cálcio, magnésio e ferro. Esse perfil já muito desbalanceado do ponto de vista de nutrição de plantas é exacerbado pela diferente taxa de excreção entre os elementos conforme relatamos em uma recente publicação científica pelo nosso grupo de pesquisa (Cerozi et al 2022). Verificamos, por exemplo, que o nitrogênio, fósforo e potássio possuem diferentes taxas de excreção (intermediária, baixa e alta, respectivamente), implicando na formação de uma solução nutritiva desbalanceada para o crescimento de plantas.

Convencionalmente, os praticantes de aquaponia corrigem essas discrepâncias entre os elementos através da adição de suplementos minerais diretamente na água de aquaponia, baseando-se ou não em análises das concentrações destes elementos e presença de sinais de deficiência nas plantas. Nosso grupo de pesquisa, entretanto, tem visado trabalhar as rações de peixes de forma a torná-las menos desbalanceadas do ponto de vista de produção vegetal. Atualmente, finalizamos um projeto de pesquisa em que modulamos o teor de potássio nas rações de peixe sem afetar a formulação basal e, com isso, conseguimos produzir uma solução aquapônica mais rica em potássio e com isso, produzir alface com biomassa até 30% maior do que aquelas produzidas com rações convencionais. Outra estratégia proposta pelos nossos trabalhos é modular a química da água através da adição de substâncias húmicas que são quelantes naturais capazes de manter os íons de ferro mais tempo em solução e evitar sua precipitação e indisponibilização para as plantas.

 

 

5. Em relação a “caixa-preta” de nutrientes na Aquaponia, você poderia explicar um pouco melhor este conceito? Quais as soluções e como você enxerga como principais barreiras para um melhor entendimento e manejo de nutrientes no sistema?

 

Brunno: O conceito de “caixa-preta” em aquaponia é justamente o que vínhamos fazendo durante décadas nesses sistemas por apenas avaliar os inputs e os outputs do sistema, sem dar muita ênfase nos mecanismos que os conduzem. Por exemplo, a grande maioria dos estudos de aquaponia analisam diferentes relações peixe : planta em aquaponia, ou testam diferentes espécies de peixe ou plantas em aquaponia, fazendo uma avaliação limitada do sistema, não quantificando, não caracterizando, e não entendendo/descrevendo o funcionamento dos fluxos de nutrientes entre os diferentes subcomponentes de um complexo sistema de aquaponia.

O estudo que mencionei anteriormente em que propomos o termo “coeficiente de liberação de nutrientes” foi uma “ primeiro olhar” dentro da caixa-preta da aquaponia. O ensaio proposto no estudo é de simples e rápida execução e capaz de predizer entradas de nutrientes em aquaponia pois determina rapidamente a biodisponibilidade e a taxa de liberação de nutrientes para qualquer ração de peixe analisada. Por exemplo, se em uma determinada localização um produtor tem acesso à ração A com 4,5% de nitrogênio (aproximadamente 28% de proteína bruta) e outro produtor tem acesso à ração B com 6,0% de nitrogênio (aproximadamente 38% de proteína bruta), com base no coeficiente de liberação de N calculado de 0,64 encontrado em nosso estudo, significa que a ração A irá colocar 28,8 g de N na água por quilo de ração alimentada aos peixes no sistema de aquaponia, enquanto a ração B irá colocar 38,4 g de N por quilograma, permitindo que os produtores façam suposições personalizadas sobre quantas plantas eles precisam no sistema de aquaponia para compensar a entrada de nitrogênio calculada. Este método permite também prever com precisão e antecedência quais elementos em particular de uma ração de peixe não atenderão a demanda para o crescimento das plantas e provisionar a suplementação de nutrientes. Mais importante ainda, acreditamos que nosso ensaio possa ser realizado em qualquer lugar do mundo com confiabilidade e replicabilidade dos resultados. Este ensaio poderia ser uma alternativa aos estudos longos e trabalhosos de relação peixe: planta na pesquisa com aquaponia, e possivelmente acelerar o ritmo de desenvolvimento e a disseminação da aquaponia ao redor do mundo. 

 

 

 

 

 

 

6. Por gentileza, deixe suas perspectivas futuras para a Aquaponia e considerações finais aos leitores da Aquaculture Brasil

 

Brunno: A aquaponia é uma prática agrícola economicamente viável e ambientalmente sustentável que pode sanar diversos desafios impostos pelo crescimento populacional, escassez de alimentos de qualidade e mudanças climáticas. Não é questão de se, mas de quando, a aquaponia será uma tecnologia imperativa em nossos sistemas agroalimentares, pois os prospectos hoje não são nada favoráveis. A meta de limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais será provavelmente violada na próxima década, conforme alertou o mais recente Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Há várias perspectivas desfavoráveis em relação ao não atendimento das metas da agenda de mudanças climáticas, como mudanças nos padrões de precipitação, aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos e redução da biodiversidade. Todos esses fatores podem ter um impacto significativo em nossos sistemas agroalimentares convencionais. Eles podem levar a uma diminuição na produção agrícola, aumentar os preços dos alimentos e afetar a segurança alimentar em todo o mundo. É importante que sejam tomadas medidas para mitigar esses efeitos, como a implementação de práticas agrícolas sustentáveis atreladas à redução das emissões de gases de efeito estufa. No cenário atual, é relativamente fácil produzir alimentos em um planeta farto de recursos naturais. Mas, em um dado momento no futuro, caso não ocorra ajustes de curso, os prospectos se concretizarão e nos encontraremos com uma população de 10 bilhões querendo se alimentar de proteína, gordura, carboidratos e fibra de alta qualidade vindo de sistemas de produção que competirão com os próprios seres humanos por água, terra, energia e nutrientes.

 

Por: Maurício G. C. Emerenciano*

CSIRO, Livestock & Aquaculture Program, Bribie Island Research Centre, Bribie Island, Austrália.

E-mail: mauricio.emerenciano@csiro.au

*As opiniões citadas acima são exclusivamente pessoais dos autores e não necessariamente remetem as opiniões das instituições vinculadas ao mesmo.

 

 

 

 

 

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Maurício Emerenciano

Maurício Emerenciano é graduado em Zootecnia (UEM), mestre em aquicultura (FURG) e doutor em Ciências pela UNAM (México). Em 2014 foi ganhador da Medalha Alfonso Caso (menção honrosa designada às melhores teses e dissertações dos Programas de Pós-Graduação da UNAM/México). Atua na aquicultura desde 2002 e como pesquisador já realizou cooperação científica em diversos centros de pesquisa como Waddell Mariculture Center (EUA), CSIRO (Austrália) e IFREMER (França). Foi consultor científico em aquicultura para o governo do Chile, do México e Polinésia Francesa (Pôle d’Inovación de Tahiti). Membro do Biofloc Technology Steering Committee (AES), voltado a ações científicas e tecnológicas referentes ao sistema BFT. Possui capítulo de livro referência mundial da tecnologia de bioflocos (Biofloc Technology - The practical guide 3rd edition). Já proferiu mais de 20 cursos e diversas palestras sobre tecnologias “mais verdes” de produção para produtores, indústria e academia no México, Brasil, Chile e Colômbia. Atualmente é professor e pesquisador da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), campus Laguna/SC, onde coordena projetos de pesquisa vinculados ao setor público e privado.

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Charge Edição nº Publicado em 18/09/2023
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