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Tecnologia do Pescado
01 de Agosto de 2018 Alex Augusto Gonçalves
Peixes fermentados, anchovados ou aliche?

Uma dúvida persiste quando estamos falando sobre o processo de fermentação de peixes. O termo correto é peixe fermentado, anchovado ou aliche?

Os peixes da espécie Engraulis encrasicolus, cujos nomes comuns são “anchois” na França, “anchoa” na Espanha, “semiconserva de anchovas” ou “biqueirão” em Portugal, “anchovis” na Alemanha, “alici” (pronunciase “alitche”) ou “ancioia” na Itália, e denominado “European anchovy”, ou seja, anchova europeia pela FAO, são os mais utilizados para a fabricação de peixes fermentados. Em alguns países de língua latina os termos peixe anchovado e anchovagem são muitas vezes utilizados como sinônimos de peixe fermentado e fermentação, respectivamente, porém, qualquer termo utilizado está correto. O termo “peixe fermentado”é mais técnico, usualmente utilizado por pesquisadores e na indústria, enquanto que o termo “anchovado” é mais comum para o consumidor, usualmente utilizado comercialmente, e o termo “aliche” mais utilizado na gastronomia.

 

 

 

 

Na Itália o líquido obtido da preparação do “alici” é denominado “colatura di alici” e usado como condimento. Na França as anchovas fermentadas são comercializadas em latas como filés inteiros ou em pedaços ou em bisnagas de alumínio, em forma de pasta e são denominadas de “Paté d’anchois”, “Beurre d’anchois” ou “Crème d’anchois” dependendo da porcentagem de anchovas e outros ingredientes. Os anchovados autênticos somente podem ser elaborados com peixes da família Engraulidae (Engraulis encrasicolus, E. ringens, E. anchoita, E. mordax, E. japonica).

Produtos elaborados com outras espécies geralmente são denominados com o nome comum da espécie + o termo anchovada(o) ou produto “tipo anchova”. Em Portugal também se “anchovam” peixes como a cavala (Scomber japonicus), peixe agulha (Belone belone), sardinha (Sardinella aurita), que tomam a denominação de cavala anchovada, peixe agulha anchovado, sardinha anchovada, respectivamente.

No Brasil é utilizada a sardinha (Sardinella brasiliensis) que possui características de composição que permitem o desenvolvimento do aroma, sabor, cor e textura próprios dos anchovados. A produção ocorre em escala industrial pequena, e o tempo de produção é longo, devido à fermentação e a cura necessárias para o produto atingir as características sensoriais desejáveis. Estes produtos são comercializados com a denominação de “Sardinha anchovada” ou “Filés de sardinha anchovadas” ou “Filé de peixe anchovado”.

No Programa de Pós-Graduação em Ciência Animal (PPGCA/UFERSA), o mestrando Roosevelt de Araújo Sales Junior (LAPESC, UFERSA) está estudando a viabilidade de se produzir o “aliche” a partir da carne do peixe-voador (Hirundichthys affinis). Nos testes preliminares, os resultados já estão demonstrando resultados promissores.

 

Mas o que são os produtos fermentados de peixes?

Existem centenas de produtos fermentados de pescado, processados a partir de diversas espécies e com diferentes tecnologias, de acordo com a região de origem. Estes produtos variam em suas características sensoriais (aparência, textura, sabor, odor), condições higiênicas do processamento, matérias primas utilizadas, custo de produção e finalidade de uso, sendo que o produto obtido, de sabor peculiar é o principal objetivo da fermentação e, a preservação, fica em segundo plano. A adição de carboidratos tais como sacarose, açúcar mascavo, arroz tostado ou cozido, ou diversos condimentos, permite obter produtos tradicionais fermentados de pescado com diferentes sabores e aromas.

Dessa forma, os produtos fermentados de pescado são preparados efetuando-se a salga da matéria prima e fermentando-se o produto salgado. Entende-se por fermentação a transformação de substâncias orgânicas em compostos mais simples seja pela ação de enzimas ou de microrganismos localizados no próprio tecido da matéria prima. A salga reduz a umidade e consequentemente, a atividade de água, auxiliando na seleção da flora bacteriana desejada, geralmente eliminando microrganismos deterioradores mais comuns no pescado, prevenindo a deterioração. Durante o processo de fermentação do pescado, enzimas endógenas hidrolisam as proteínas musculares, somado aos microrganismos de vários tipos (bactérias, leveduras e fungos) promovem alteração de textura, aparência, aroma e sabor do produto.

Existem diferentes formas de se agrupar os produtos fermentados de pescado de acordo com características comuns. Uma das mais utilizadas se baseia na aparência/textura do produto, e assim divide os produtos de pescado fermentado em três categorias:

1) produtos onde a forma natural do pescado é preservada;

2) produtos onde o pescado é macerado até se obter uma pasta;

3) produtos onde o pescado é completamente hidrolisado até a forma líquida, geralmente recebendo o nome de molho de pescado.

 

 

 

 

Princípios da conservação

A elaboração de produtos fermentados de pescado consiste basicamente em um processo de conservação baseado em duas etapas: 1) salga, realizada com concentrações variáveis de sal, e, 2) maturação, quando o produto passa por uma hidrólise proteica controlada provocada por enzimas endógenas e/ou produzidas por microrganismos halotolerantes. Ocorre uma diminuição da umidade, as proteínas são transformadas em compostos mais estáveis, os lipídios são parcialmente oxidados e compostos aromáticos são formados, sendo obtidos produtos com sabor diferenciado. O produto quando maturado deve ser macio, mas consistente, e a coluna vertebral removível facilmente da carne.

Os peixes fermentados produzidos no Brasil podem ser considerados semiconservas, ou seja, produtos que se caracterizam por apresentarem teores de sal superiores a 6% de NaCl (p/p) na fase aquosa ou pH inferior a 5,0; presença eventual de agentes conservantes (sorbato, benzoato, nitrato); e por não serem submetidos a tratamento térmico durante o processamento ou durante o preparo que precede o consumo.

No Brasil, não existe legislação para produtos fermentados de pescado, que regulamente seu processamento tecnológico e características de identidade e qualidade. No novo Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Origem Animal – RIISPOA 2017, foi introduzido o Artigo 342 que define “pescado em semiconserva” - é aquele obtido pelo tratamento específico do pescado por meio do sal, com adição ou não de ingredientes, envasado em recipientes hermeticamente fechados, não esterilizados pelo calor, conservado ou não sob refrigeração.

Embora a tecnologia envolvida no processamento seja simples, uma série de fatores pode influenciar o processo, tais como: a microflora presente no pescado, sal e outros ingredientes; qualidade e concentração de sal; a atividade proteolítica das enzimas características da espécie de pescado; condições da matéria prima, incluindo frescor, condição nutricional; temperatura durante a fermentação; pH atingido na fermentação; presença de enzimas das vísceras ou de outras fontes; presença e concentração de carboidratos e outros aditivos; duração do processo de fermentação.

 

Características do produto final

Sob o ponto de vista nutricional, os produtos fermentados de pescado apresentam-se como excelentes fontes de proteínas e aminoácidos essenciais. Em geral, produto tradicional de peixe fermentado contém entre 44 a 47% de umidade, 20 a 22% de proteínas, 7 a 15% de lipídios e 15 a 17% de sal. O teor de umidade varia muito pouco entre os produtos fermentados de pescado na forma de pasta (< 3%), independentemente da espécie utilizada e do processamento inicial da carne (lavada ou sem lavar). Com relação aos outros macro componentes, proteínas, lipídios e cinzas, também ocorrem pequenas variações.

Portanto, apesar da tecnologia ser simples e viável tecnologicamente, o produto fermentado, anchovado ou o aliche ainda tem pouca inserção no mercado nacional, exceto no eixo Rio-São Paulo, onde o produto é muito consumido como ingrediente de petiscos, canapés e pizzas. Essa delicatessen merece mais destaque no mercado para que o consumidor possa introduzi-lo no seu dia a dia.

 

 

 

 

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Capa do colunista Alex Augusto Gonçalves
Alex Augusto Gonçalves

Oceanógrafo (FURG – 1993), Mestre em Engenharia de Alimentos (FURG – 1998), Doutor em Engenharia de Produção (UFRGS – 2005) e Pós-doutor em Engenharia (Dalhousie University, Halifax, Canada – 2008). Foi professor do curso de Engenharia de Alimentos (ICTA/UFRGS e UNISINOS), coordenador adjunto do Curso Superior em Gastronomia (UNISINOS). Foi professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Ciência Animal, da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), do Programa de Pós-Graduação em Nutrição (PPGNUT/UFRN) e do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Ecologia Marinha e Costeira (PPG-BEMC/UNIFESP). Hoje é Professor Associado IV de Tecnologia do Pescado no curso de Engenharia de Pesca, Chefe do Laboratório de Tecnologia e Controle de Qualidade do Pescado (LAPESC/CCA/DCA/UFERSA), cedido ao Ministério da Agricultura e Pecuária (desde 2019). Foi Coordenador-Geral da Pesca Continental (SAP/MAPA), Coordenador-Geral de Monitoramento da Pesca e Aquicultura (SAP/MAPA), Diretor Departamento de Pesca (SAP/MAPA), Gerente de projetos do Escritório de Gestão de Projetos (SAP/MAPA), Assessor Técnico Especializado do Departamento de Produção Sustentável e Irrigação (DEPROS/SDI/MAPA), Chefe do Serviço de Transparência e Fomento (DEPROS/SDI/MAPA), e atualmente Chefe de Ouvidoria e Transparência (Ouvidoria/MAPA). Consultor Ad hoc de revistas nacionais e internacionais, revisor Ad hoc de Projetos de Pesquisa e Extensão, e consultor internacional da FAO/ONU. Bolsista Produtividade em Pesquisa (PQ) CNPq – nível 2 (2017-2019). Editor Associado – Brazilian Journal of Food Technology. Editor do Livro “Tecnologia do Pescado: ciência, tecnologia, inovação e legislação” premiado em 2º Lugar na Categoria “Tecnologia e Informática”, no 54º Prêmio Jabuti 2012.

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