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01 de Maio de 2017 Aquaculture Brasil
Mineralização de sólidos: reaproveitando nutrientes na aquaponia

Que a aquaponia é um sistema alternativo de produção de alimentos, que integra o melhor da aquicultura com a hidroponia, isso todos já sabem! Mas o que poucos sabem é que os sólidos retirados do sistema e coletados em filtros mecânicos (Figura 2) podem ser reciclados. Consequentemente uma série de nutrientes são recuperados e reintegrados ao sistema! Em outras palavras, o material coletado pode ser mineralizado garantindo ainda mais sustentabilidade ao sistema aquapônico.

A aquaponia reduz o uso de água e facilita seu tratamento realizado muitas vezes de forma natural, pois sua diversa comunidade microbiana recicla substâncias orgânicas e inorgânicas da água, transformando em nutrientes absorvíveis para as plantas. No entanto, é importante salientar que apenas uma pequena fração dos nutrientes contidos nas rações são transformados ou aproveitados. Como exemplo, menos de 20% do fósforo e nitrogênio são realmente retidos em biomassa de peixes, pois muitas vezes os processos digestivos são pouco eficientes e ainda dependem da qualidade das matérias-primas usadas na fabricação das rações. Como resultado, muita sobra de nutrientes na água, mas de forma pouco biodisponível para as plantas. Neste sentido, por meio da mineralização agora é possível aumentar a disponibilidade desses nutrientes, aumentado a produção de hortaliças, frutas e até mesmo flores.

Para entender todo esse processo é importante compreendermos alguns pontos- chave. O presente artigo aborda conceitos e métodos sobre o uso da mineralização como forma de aumentar ainda mais a reciclagem de nutrientes e redirecioná-los ao sistema. Além disso, traz diversos resultados de pesquisa realizados em centros de excelência no Brasil e fora dele. Tais resultados demonstraram que além do uso racional de efluentes (evitando seu descarte inadequado), é possível reutilizar os nutrientes neles contidos, aumentando a sustentabilidade desse fabuloso sistema que vem ganhando adeptos mundo afora.

 

Mas afinal, o que é a mineralização?

A mineralização é basicamente a transformação da matéria orgânica em matéria inorgânica. Essa transformação ocorre por meio da ação de microrganismos aeróbios e anaeróbios, liberando nutrientes e minerais assimiláveis para outros organismos como plantas e demais microrganismos aquáticos. Nos cultivos aquícolas, este processo ocorre em certos dispositivos, principalmente quando retiramos os sólidos suspensos removidos da água, visando manter a sua qualidade. Na atual realidade aquícola é comum projetar mineralizadores para o cultivo de certas espécies, principalmente em sistemas de recirculação de água (RAS), com espécies de alto valor agregado. Estes mineralizadores são também chamados de biorreatores, capazes de operar em condições aeróbias (presença de oxigênio) ou anaeróbias (ausência de oxigênio) para finalidades distintas.

Pela via aeróbia, a matéria orgânica (MO), medida comumente como Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO) ou Demanda Química de Oxigênio (DQO), é consumida por microrganismos heterotróficos atuando também como agente importante na transformação do nitrogênio orgânico em nitrogênio mineralizado. Já pela via anaeróbia, a MO é consumida por microrganismos facultativos ou anaeróbios obrigatórios, pois não há oxigênio disponível no meio. Esse processo ocorre simplificadamente em duas etapas: na primeira ocorre a conversão da MO em ácidos e álcoois, e na segunda etapa essas substâncias são transformadas principalmente em amônia, metano e dióxido de carbono. Ambos os processos de mineralização produzem novas células microbianas. Cabe mencionar que a mineralização anaeróbia é muito mais lenta do que a aeróbia. No entanto, quando o fornecimento de oxigênio é um fator limitante nos mineralizadores, a depuração anaeróbia pode ter prevalência no objetivo de reduzir matéria orgânica dos sólidos retirados do sistema aquapônico.

 

Quais os principais tipos de dispositivos mineralizadores?

Os mineralizados são também chamados pela Engenharia Sanitária e Ambiental de Biorreatores. Atualmente conta-se com diversas tecnologias disponíveis no mercado, tanto de biorreatores aeróbios, anaeróbios ou híbridos, ou seja, que possuem as duas fases de decomposição da matéria orgânica em um único equipamento. Os tipos mais comuns são:

  • Mineralização aeróbia: biodigestores aeróbios e lodos ativados convencionais;
  • Mineralização anaeróbia: biodigestores anaeróbios e os reatores tipo UASB (do inglês, up-flow anaerobic sludge blanket);
  • Mineralizadores híbridos: biorreatores de múltiplas câmaras (compartimentos) com fases bem distintas de aerobiose e anaerobiose.

 

Pesquisas realizadas na Universidade de Liège, Bélgica

No Laboratório Integrado e Urbano de Patologias de Plantas (IUPPL), da Faculdade de Gembloux, Universidade de Liège, na Bélgica, diferentes aspectos da aquaponia são focos de pesquisa. Um exemplo é o estudo aprofundado da microbiota presente no sistema, visando elucidar o efeito de proteção e de promoção de crescimento que os microrganismos provocam nas plantas. Adicionalmente, novas técnicas de identificação microbiana como a “Next Generation Sequencing technics” (“NGS” na sua sigla em inglês) estão sendo empregadas com sucesso para identificar o efeito da microbiota presente na água no crescimento das plantas. Recentemente um estudo comparativo do crescimento de alfaces em sistemas hidropônicos versus aquapônicos utilizou estas novas técnicas de identificação e auxiliou a explicar os resultados fitotécnicos e a sua relação com a comunidade microbiana (Delaide et al., 2016).

Outro foco de pesquisa na Universidade de Liège é a melhora da reciclagem de nutrientes. Em estudo realizado em sistema de “PAFF Box” com tilápias, alfaces e manjericão (Figura 1) demonstrou que existe um excesso de perdas de nutrientes. Isso porque quando aplicado a técnica de “one loop” (ou circuito único fechado) estes nutrientes ficam retidos na forma de lodos nos sedimentadores (Delaide et al., artigo no prelo). Neste sentido, o potencial de técnicas que permitem isolar diferentes compartimentos da aquaponia (peixes, plantas e filtração) e promover a reutilização de nutrientes são temas recente de pesquisas. O uso dos chamados “Decoupled Aquaponics System” (Goddek et al., 2016; e recentemente discutido na coluna “Green Technologies” da edição no 2 da Revista Aquaculture Brasil) integrado com dispositivos de mineralização anaeróbia (como, por exemplo, reatores UASB) estão sendo alvo de pesquisas neste momento. Resultados preliminares apontam redução de 50% dos sólidos em suspensão e do carbono orgânico dissolvido, e que quando em excesso são nocivos as raízes das plantas. Além disso, foi observada melhora no reaproveitamento de nutrientes, promovido pela mineralização, na ordem de incríveis 40%.

 

Pesquisas realizadas na Universidade de Wagenigen, Holanda

Na Universidade de Wageningen (WUR), na Holanda, centro de excelência mundial em aquicultura e também nas Ciências Agrárias, a aquaponia igualmente tem seu lugar de destaque. O pioneirismo e foco atual das pesquisas são os sistemas “Decoupled” desenvolvidos por meio de modelos matemáticos utilizando softwares como o Anylogic, Python e MATLAB (Goddek et al., 2016; Reyes Lastiri et al., 2016), e posteriormente testados in situ. Conjuntamente com a Universidade de Liège, reatores anaeróbios têm sido desenhados, construídos e testados (Figura 4). Vale salientar que a Holanda é um dos berços do mundo no tratamento de efluentes com reatores anaeróbios. Aplicando técnicas de dessalinização e destilação, os desafios atuais concernem entre o controle e balanço de massas de nutrientes, além de desenvolver experimentos visando aumentar o grau de mineralização ou “remineralizações” (uma vez que o fluxo de água é contínuo, mas controlado nos diferentes compartimentos). Estudos dessa natureza são extremamente importantes uma vez que visam promover e garantir condições ambientais ótimas para peixes e plantas, integrados em um mesmo sistema. E este é um clássico desafio a ser resolvido na aquaponia.

Para alcançar níveis ótimos de nutrientes para as plantas (que possuem exigências nutricionais altas) utilizando efluentes dos peixes (pobres em nutrientes) o desafio é imenso e a suplementação quase sempre necessária. Neste sentido, estudos recentes com dessalinização e tecnologias de mineralização anaeróbia apontaram a possibilidade de aumentar ainda mais a eficiência no uso dos nutrientes, melhorando seu balanço e promovendo melhores condições ambientais. Um exemplo esquemático dos sistemas “Decoupled” com mineralização anaeróbica pode ser observado na Figura 5. Baseado nestas abordagens, a produção de alimentos via aquaponia em regiões de clima inóspito ou com características físico-químicas de água diversas, pode se tornar uma opção viável. Por meio de colaborações técnico-científicas, recentemente a adoção destas técnicas já ocorre em lugares como a Namíbia, África (Goddek & Keesman, 2017).

 

Pesquisas realizadas na Embrapa

Seguindo as tendências mundiais, o Brasil iniciou recentemente pesquisas na área de mineralização de nutrientes, mas com foco na reciclagem aeróbia. Em colaboração com o Laboratório de Aquicultura (LAQ), da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) campus Laguna/SC, foi realizado um estudo preliminar na Embrapa Tabuleiros Costeiros com mineralização aeróbia (Figura 6). Neste estudo avaliou-se o efeito em estimular a comunidade aeróbia e heterotrófica, utilizando diferentes relações de carbono:nitrogênio (C:N) aplicadas no lodo residual coletado de cultivos aquapônicos de tambaquis. Este lodo (grande fonte de nitrogênio, fósforo e demais nutrientes) era formado principalmente de fezes, resíduos de ração e demais partículas em suspensão coletado diretamente dos clarificadores. Por meio de cálculos (Emerenciano, et al. 2017) dos nutrientes C:N presentes no lodo e na fonte de carbono utilizada (melaço de cana-de-açúcar) foi estimulado o crescimento microbiano utilizando relações de 13:1 (relação natural presente no lodo ou “controle”), 20:1 e 30:1. Após 31 dias avaliou-se as mudanças nas concentrações de certos nutrientes na porção sólida e líquida do lodo mineralizado.

Como principais resultados foi observada oscilação do pH, queda nos níveis de oxigênio dissolvido e aumento na condutividade elétrica (nocivo as plantas) com o incremento na relação C:N. Amônia, nitrito, nitrato e alcalinidade tiveram flutuações maiores no tratamento 30:1. Além disso, na fração líquida (sobrenadante) as concentrações de certos nutrientes tiveram comportamentos bastantes diferenciados aos 14 dias e ao final do período experimental, e também de acordo com cada tratamento. Resultados ainda preliminares apontaram que nutrientes como Fe e K aumentaram suas concentrações nos primeiro 14 dias, apresentando queda logo após. Já outros nutrientes como P e Mn diminuíram (possivelmente devido ao consumo microbiano), enquanto que alguns aumentavam suas concentrações ao longo do tempo (Na e Cu). Foi observado que o incremento da fonte de carbono e presença da comunidade heterotrófica interferem drasticamente nos resultados, consumindo ou liberando determinados nutrientes e em determinados tempos. Aparentemente a simples aeração (sem uso de fontes externas de carbono) já contribui com a disponibilidade de certos nutrientes.

 

Perspectivas para o futuro

A reflexão que é possível fazer com base no presente artigo é simples: mineralização aumenta ainda mais a sustentabilidade do sistema aquapônico. A aplicação dessas práticas certamente resultará em economia e diminuição de gastos com nutrientes exógenos (fertilizantes) e, principalmente, em redução de efluente e seu consequente impacto ambiental. Esperamos que isso aconteça em um futuro não muito distante, pois aumentará a eficiência do uso dos recursos na produção mais sustentável de alimentos como demonstrado em estudos preliminares (Delaide et al., 2016; Goddek & Vermeulen, 2017).

Mas para tal é unânime a importância de mais pesquisas, principalmente sobre equipamentos, desenhos e layouts para elucidar as diferentes “caixas-pretas” do sistema aquapônico. É fundamental que órgãos de fomento a pesquisa se sensibilizem sobre a importância da aquaponia no contexto brasileiro, onde a escassez de água, de terras e custo por nutrientes estão cada vez mais presentes na nossa realidade. Além disso, políticas públicas devem ser criadas e adotadas, andando lado a lado com a realidade (e dificuldade) dos produtores. O recente projeto de lei federal PLS 162/2015, que ainda esta em tramitação, é um belo exemplo a ser seguido (mais informações sobre esse projeto de lei, coluna “Green Technologies” da 4ª edição da Aquaculture Brasil). Para finalizar, o caminho ainda é longo para alcançarmos o sistema ideal ou o modelo ideal, pois as variáveis são muitas e os objetivos os mais diversos. No entanto, a aquaponia nas suas diferentes facetas atende em cheio o perfil do consumidor que cada vez mais busca por alimentos mais sustentáveis. Traduzindo: os horizontes e as oportunidades estão se ampliando cada vez mais. A revolução apenas esta começando!

 

Autores:

Maurício Gustavo Coelho Emerenciano
Zootecnista, PhD Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC),
Laboratório de Aquicultura (LAQ), campus Laguna-SC e Programa de Pós-Graduação em Zootecnia (UDESC), campus Chapecó-SC
mauricio.emerenciano@udesc.br

Paulo César Falanghe Carneiro
Eng. Agrônomo, PhD Embrapa Tabuleiros Costeiros, Aracaju-SE
paulo.carneiro@embrapa.br

Marina Lapa Viana, Eng. Civil
marina_lapa@hotmail.com

Katt Regina Lapa
Eng. Civil, PhD Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Departamento de Aquicultura, Florianópolis-SC
katt.lapa@ufsc.br

Boris Delaide
Msc.Laboratório Integrado e Urbano de Patologias de Plantas
Gembloux Agro-Bio Tech, Universidade de Liège (ULg), Liège, Bélgica
boris.delaide@ulg.ac.be

Simon Goddek
Msc. Universidade de Wageningen (WUR), Wageningen, Holanda
simon.goddek@wur.nl

 

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