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Piscicultura
07 de Junho de 2021 Aquaculture Brasil
Piscicultura em reservatórios e açudes do semiárido: aspectos climatológicos e limnológicos

A climatologia do Semiárido brasileiro é caracterizada por precipitações pluviométricas bastante   irregulares com médias históricas anuais de 800 mm, evaporação com médias históricas de 2000 mm, resultando em constante déficit hídrico. Periodicamente ocorrem os processos de estiagens prolongadas, quando as irregularidades pluviométricas se tornam mais intensas e as precipitações ocorrem abaixo das médias históricas.

Outra característica importante verificada nessa região é a grande quantidade de açudes, barramento e represamento de rios, em maioria, construídos com objetivo de armazenar água para consumo humano. Essa condição é consequente do fato de que, dentre as regiões com clima semiárido no mundo, o Semiárido brasileiro é a mais populosa, com aproximadamente 26,6 milhões de habitantes distribuídos pela zona rural e em 1262 municípios. 

 

 

Nos últimos 10 anos a piscicultura passou por um crescimento exponencial acompanhado pelo desenvolvimento de tecnologias de cultivo que possibilitam maior incremento da produção e maior preservação do recurso hídrico, diferenciando-a do tipo de piscicultura exercido em décadas passadas. Simultaneamente, nestes últimos 10 anos o Semiárido brasileiro enfrentou um forte período de estiagem reduzindo drasticamente os volumes hídricos dos açudes e lagos de represas hidroelétricas do rio São Francisco.

Essa realidade impactou negativamente a piscicultura no Semiárido nordestino, especialmente a modalidade tanque-rede. A redução do volume hídrico dos açudes comprometeu a condição de cultivo, inviabilizando a continuidade de muitas pisciculturas. Bem menos divulgado, os diversos e sucessivos casos de mortalidade generalizada em diversas pisciculturas, comprometeu, em menor e ou maior escala, a sustentabilidade da atividade em alguns açudes e nos reservatórios da bacia hidrográfica do rio São Francisco.

Pelos motivos expostos, esse artigo discute a realidade de dois polos de piscicultura em tanques-rede compreendidos pelos lagos do rio São Francisco e os açudes do Ceará.  Propõe-se aqui provocar uma discussão sobre os aspectos climatológicos, limnológicos, meteorológicos e hidrológicos inerentes a piscicultura, especialmente para fomentar essa reflexão entre os tomadores de decisão sobre as políticas públicas e privadas de investimento em piscicultura em tanque-rede no Semiárido brasileiro. 

 

 

Tanque-rede nos lagos do rio São Francisco e açudes do semiárido

Nos lagos Sobradinho (BA) (Figura 01), Itaparica (PE) e Moxotó (AL)  localizados no vale do médio rio São Francisco, é desenvolvida a tilapicultura em tanques-redes há 20 anos, aproximadamente, resultado de ações de desenvolvimento regional realizadas pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba – CODEVASF.

No lago Sobradinho, na bacia hidrográfica do médio São Francisco, a atividade foi introduzida por volta de 2004. Devido às características deste lago e da forte aptidão para a fruticultura na região do Vale do São Francisco, a produção média anual é de cerca de 120 toneladas/ano, representa algo em torno de 10% da produção em Itaparica e Moxotó (Campeche, 2017).

No Ceará, a partir dos anos 2000, por ação governamental da Secretaria de Agricultura, Pesca e Aquicultura - SEAPA-CE e da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos - COGERH-CE, foram implantadas tilapiculturas em tanque-rede em vários açudes, especialmente, nas bacias hidrográficas dos rios Jaguaribe e Salgado. Os açudes Castanhão e Óros foram os maiores produtores de tilápia do Estado. A piscicultura em tanque-rede em açudes do Ceará teve seu período de crescimento e apogeu, respondendo respectivamente pelo primeiro e segundo lugares na produção nacional de tilápias. No entanto, fatores de ordem limnológica, meteorológica e climatológica interferiram na atividade causando declínio na produção. Conforme o Anuário Peixe BR da Piscicultura (2020), atualmente o Ceará responde pela 17ª posição do ranking da produção nacional de tilápia.

 

Climatologia e piscicultura em tanque-rede

Fatores climáticos atmosféricos que alteram o meio ambiente aquático, são uma ameaça externa à piscicultura em tanque-rede, tornando a piscicultura uma atividade de risco, especialmente pela impossibilidade de evitar ou controlar esses fenômenos. 

No período de 2010 a 2019 o Semiárido enfrentou longo período de estiagem, resultando em redução dos volumes hídricos dos reservatórios e açudes, no entanto, as chuvas ocorridas em 2019 e 2020 não foram suficientes para garantir uma boa recuperação dos volumes hídricos. O monitoramento da Agência Nacional de Águas-ANA, revelou que a recuperação média dos volumes hídricos dos grandes açudes e reservatórios dos Estados que compõem o Semiárido nordestino não atingiram valores superiores a 65,5%. (Tabela 01).

Essa redução hídrica e as mortalidades generalizadas impactaram fortemente as pisciculturas, inviabilizando a continuidade da atividade em alguns açudes, resultando em fim da atividade para os piscicultoresmenos capitalizados. Porém, os piscicultores detentores de maiores capitais realizaram transferência do cultivo para outros ambientes com maior disponibilidade hídrica. Em ambos os casos, a transferência ou o encerramento precoce das atividades gerou prejuízos, provocando comprometimento financeiro de alguns piscicultores.

Portanto, o conhecimento e análise dos dados meteorológicos, especialmente as médias históricas e o registro dos períodos de estiagem prolongadas podem fornecer importante indício do comportamento climatológico e suas consequências sobre os corpos hídricos. Nesse sentido, a implantação de piscicultura em tanque rede e ou o reinício das atividades de pisciculturas paralisadas pela crise hídrica, deverão acontecer mediante análise supracitada.

 

 

Mortalidade generalizada no cultivo em tanque rede em ambientes do semiárido

Os efeitos da seca extrema têm sido apontados como um fator impactante sobre a piscicultura em tanque-rede. No entanto, não deve ser desconsiderado os eventos de mortalidade generalizada ocorrido em diversas pisciculturas. Conforme Henry-Silva, Melo Júnior e Attayde (2019) as relações entre as variações climáticas e a piscicultura em tanque-rede estão diretamente ligadas a sustentabilidade da atividade em reservatórios do Semiárido.

No setor produtivo ainda há desconhecimento sobre a origem e mecanismos meteorológicos e limnológicos relacionados com essas mortalidades. Este fenômeno conhecido na piscicultura como ressurgência e inversão térmica, na Limnologia é denominado de circulação vertical turbulenta. 

Deveria ser sabido por todos os piscicultores e demais atores da cadeia produtiva que, ao longo do tempo, e com os efeitos climáticos sobre um sistema sobrecarregado, haveria possibilidade de episódios de mortalidade nas pisciculturas. De forma sazonal, em períodos chuvosos pode ocorrer nos lagos dos reservatórios, o aumento abrupto de matéria orgânica transportada por rios, alterando fatores bióticos e abióticos da água. 

Além desses fatores, nesse período de estiagem foi observado a migração de alguns piscicultores do açude Castanhão para a região dos lagos Itaparica e Moxotó (Figura 02), fato que naturalmente aumentou a sobrecarga de biomassa no ambiente, predispondo-o a eventos de mortalidade de peixes cultivados. 

Nas condições da circulação vertical turbulenta poderá haver morte súbita de peixes livres e, principalmente, dos peixes cultivados em tanques-redes, conforme já ocorrido algumas vezes nos lagos do rio São Francisco e açudes do Ceará (Figura 03). Desta forma, o excesso de matéria orgânica acumulado nos fundos dos lagos, potencializa o efeito negativo e mortal, causado quando há circulação vertical turbulenta. Esta realidade já foi documentada em diversos lagos do mundo onde há polos de piscicultura em tanques-redes.

Estudos realizados pelo laboratório Limnologia e Aquicultura / URCA, sugerem que em açudes da bacia do rio Salgado, os eventos de mortalidade foram causados pela circulação vertical das massas de água (Melo Júnior, Dias e Vasconcelos, 2019; Melo Júnior et al, 2019). 

Os eventos de circulação vertical turbulenta alteram a condição físico-química da água tornando-a tóxica, anóxica e letal aos peixes. Parte desse fenômeno poder ser perceptível pela mudança de cor e odor da água (Figuras 04 A e B).

A circulação vertical turbulenta causa turvação da água removendo sedimentos, distribuindo-os por toda coluna de água, alterando toda condição química e física. Em especial há o carreamento de substâncias tóxicas ao metabolismo dos peixes e matéria orgânica que contribui com a depleção de oxigênio, podendo tornar o ambiente hipóxico e ou anóxico. 

A origem desse fenômeno está diretamente associada as variações meteorológicas. No entanto, o tipo de ação antrópica na exploração do ambiente pode potencializar a condição letal desse fenômeno, especialmente as seguintes ações: permanência do cultivo na mesma área por longo tempo; a transferência de cultivo para áreas já exploradas; intensificação da produção sem análise de capacidade de suporte e da evolução do estado trófico; a falta de controle e fiscalização das áreas de cultivo (Figura 05) e por fim, falta de boas práticas de manejo. 

Situações de alta intensificação de produção por área de cultivo podem gerar respostas reversas sobre os ecossistemas, assim comprometendo a própria condição de cultivo. Na figura 05, por exemplo, em uma em área de aproximadamente 5,24 km2, provavelmente resultaria na inviabilização das boas condições de cultivo, ou seja, o excesso de resíduo dado pela intensificação dos cultivos comprometeria a capacidade de resiliência da área, predispondo-a a formar um sedimento rico em matéria orgânica e com ocorrência de decomposição anaeróbica, fato que potencializa a toxidade dos eventos circulação vertical turbulenta resultando em mortalidade nos cultivos.

 

Possíveis ações de prevenção

Como evitar estes fenômenos? Não é possível. Trata-se de um fenômeno natural. A circulação vertical faz parte da dinâmica dos ecossistemas, embora as ocorrências demonstrem haver uma escala temporal, ainda não é possível prever sua ocorrência. 

Como fazer para minimizar os efeitos negativos? Os principais encaminhamentos são: o monitoramento ambiental; a busca pelo conhecimento da dinâmica limnológica do ambiente, especialmente, a circulação vertical e o metabolismo do ecossistema (interrelações entre os processos de produção, consumo e decomposição). Para tal, é necessário aprimoramento do conhecimento técnico dos piscicultores e demais atores da cadeia produtiva, inclusive agentes e agências governamentais de fomento, controle e fiscalização. Nesse caso, acrescentar conhecimento técnico sobre aplicação de método de monitoramento limnológico e meteorológico, os quais são importantes para o entendimento da circulação vertical e dos eventos que culminam com a mortalidade dos peixes.

Igualmente importante, é pensar a longo prazo para a sustentabilidade sob a equidade dos aspectos sociais, econômicos e ambientais. Este último complementado com o fator tecnológico, especialmente representado pela Limnologia e Meteorologia, as quais são importantes subsídios ao exercício da gestão de risco e sustentabilidade.

 Ações de pesquisa e monitoramento ambiental, aliados ao apoio às instituições de pesquisa e comunicação com o setor produtivo em prol da causa, foram algumas das razões da estruturação da Rede Nacional de Pesquisa e Monitoramento Ambiental da Aquicultura em Águas da União - REDE. Esta foi instituída em 2019, pela Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca do Governo Federal, em uma ação conjunta com a Embrapa Meio Ambiente. Foram estruturadas as equipes regionais e a região Nordeste está sendo coordenada pela Embrapa Semiárido e pelo Instituto de Tecnologia de Pernambuco. 

A piscicultura em tanque-rede no Semiárido necessita de inovação tecnológica com ferramentas para executar monitoramento mais efetivo, porém menos oneroso para os piscicultores. No entanto, na atualidade é necessário que os piscicultores possam receber capacitação quanto a dinâmica limnológica dos açudes e lagos. A experiência vivenciada demonstrou que os piscicultores estão carentes de conhecimento limnológico, em maioria são desprovidos de conhecimentos sobre o metabolismo do ecossistema e sua dinâmica de funcionamento.

 

 

A importância da limnologia para a intensificação produtiva em corpos hídricos do semiárido

Independentemente da produção, a tilapicultura, nestes ambientes, possibilitou a geração de emprego e renda para muitas famílias. Assim como geração de grandes negócios a partir da cadeia produtiva estabelecida. Como consequência, o aumento da produtividade e lucratividade se tornou alvo de muitos dos piscicultores e demais atores da cadeia. 

Conforme verificado nos lagos do Rio São Francisco e em alguns açudes, piscicultores aumentaram suas áreas e densidade de produção, sem avaliar os impactos resultantes sobre o ambiente, as influências das mudanças climáticas, o incremento de resíduos no ambiente e consequente proliferação de plantas macrófitas na área do cultivo (Figura 06). Essa ação de expansão revelou a desconsideração da limnologia pelo setor produtivo e por órgãos de fomento e fiscalização.

A manutenção das atividades de piscicultura em tanque-rede no Semiárido, bem como, o retorno dessa atividade em alguns açudes e lagos devem acontecer mediante uma discussão pautada pela Limnologia, especialmente pelo fato da maioria dos açudes terem como uso principal o abastecimento humano. Portanto, a atividade de piscicultura em tanque-rede não deve ser desenvolvida de maneira que possa comprometer a qualidade limnológica das águas possibilitando que haja incremento do processo de evolução trófica, a eutrofização. 

O processo de intensificação da produção deve considerar aspectos da relação custo-benefício, tais como a capacidade de suporte, a resiliência e o balanço de massa gerado pelo cultivo. Essa relação é compreendida a partir da Limnologia, a qual permite haver conhecimento sobre: o metabolismo do ecossistema, circulação vertical e ciclo de nutrientes.

No início de 2019, a tentativa de reinício das atividades de piscicultura no açude Castanhão não obteve sucesso, as chuvas de verão e a quadra chuvosa, quando deveria ocorrer as precipitações pluviométricas mais fortes, as precipitações não foram suficientes para recuperar o volume hídrico do açude, o qual variou de 4,17% em janeiro a 5,30% em abril do mesmo ano. 

Nesse contexto, análises preditivas do comportamento meteorológico e análises limnológicas, de maneira muito clara mostrariam que não seria possível o retorno das atividades de piscicultura no referido açude. A ausência dessas análises resultou em um retorno marcado por insucesso. O baixo volume hídrico e a condição limnológica possibilitaram que os eventos de circulação vertical turbulenta ocorressem em maior quantidade e intensidade, dessa maneira, ocasionando sucessivos eventos de mortalidade dos peixes cultivados.

 

Conclusão

A piscicultura em tanque-rede desenvolvida no Semiárido brasileiro apresenta complexidade de ordem climatológica e limnológica determinadas por variações sazonais e diárias, as quais podem a qualquer instante submeter os cultivos a condições limnológicas adversas. 

A experiência vivenciada nesta década nos mostra que, no Semiárido, a sustentabilidade dessa atividade depende totalmente dos aspectos limnológicos, climatológicos, meteorológicos e hidrológicos, os quais devem ser monitorados com mesmo grau de importância que é dado ao manejo do cultivo. 

Portanto, as decisões sobre a piscicultura em tanques rede no Semiárido do Brasil devem ser precedidas de planejamento tecnológico que, no mínimo, considere a Climatologia, Limnologia e Meteorologia como ferramentas importantes no poder de decisão.

Diante do exposto é necessário compreender que o desenvolvimento de piscicultura em tanque rede em corpos hídricos do Semiárido nordestino deve ser realizado também com plano de monitoramento dos parâmetros limnológicos, especialmente por garantir maior segurança ao piscicultor, possibilitar o atendimento aos aspectos ambientais inerentes a atividade e, sobretudo, por ser um excelente caminho em busca da sustentabilidade da piscicultura em tanque-rede.

 

Autores: 

Hênio do Nascimento Melo Júnior

Universidade Regional do Cariri-URCA

Laboratório de Limnologia e Aquicultura-LLA

henio.melo@urca.br

 

Daniela Ferraz Bacconi Campeche

Embrapa Semiárido - CPATSA

daniela.campeche@embrapa.br

 

Faça o download e confira o texto completo com todas as ilustrações. Clique aqui

 

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